quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Excerto de Uma Canção de Natal


Excerto de Uma Canção de Natal, de Charles Dickens

(…)
– Bom Natal, meu tio, e que Deus o ajude! – exclamou uma voz jovial.
Era a voz do sobrinho de Scrooge, cuja entrada no escritório fora tão imprevista, que este cordial cumprimento foi o único aviso com que o rapaz se fizera anunciar.
– Tolice! Tudo isso são disparates!
O sobrinho de Scrooge, que havia caminhado apressadamente no meio da bruma gélida, tinha o rosto incendiado pela corrida. Seu rosto simpático estava vermelho, os olhos brilhavam, e, quando falava, seu hálito quente transformava-se numa nuvem de vapor.
– O Natal, um disparate, meu tio? Parece que o senhor não refletiu bem!
– Ora! – disse Scrooge. Feliz Natal! Que direito tem você, diga lá, de estar alegre? Que razão tem você de estar alegre, pobre como é?
– E o senhor – respondeu alegre e zombeteiramente o sobrinho –, que direito tem de estar triste? Que razão tem o senhor de estar acabrunhado, rico como é?
Não encontrando no momento melhor resposta, Scrooge repetiu novamente:
– Tolice! Tudo isso são disparates!
– Vamos, meu tio! Não se zangue! – disse o jovem.
– Como não me hei-de zangar, – replicou o tio, – quando vivemos num mundo cheio de gente ordinária? Feliz Natal!... Que vá para o diabo o seu feliz Natal! Que representa o Natal, a não ser uma época em que se é obrigado a abrir os cordões da bolsa já magra? Uma época em que damos por nós um ano mais velhs e nem uma hora mais ricos? Em que, fazendo um balanço, se verifica que ativo e passivo equilibram, sem deixar nenhum resultado? – Se fosse eu quem mandasse, – continuou Scrooge indignado, – cada idiota que percorre as ruas com um Feliz Natal na ponta da língua seria condenado a ser frito em azeite, junto com as rabanadas, e a ser enterrado com um galho de azevinho espetado no coração. Pronto!
– Meu tio! – exclamou o jovem.
– Meu sobrinho, – tornou o tio num tom severo –, pode festejar o Natal a seu modo, mas deixa-me festejá-lo como me aprouver.
– Como lhe aprouver? Mas o senhor não o festeja absolutamente!
– Perfeitamente! – disse Scrooge; – então, dê-me a liberdade de não o festejar. Quanto a você, que lhe faça bom proveito! O proveito que você tem tido até hoje...
– Há muita coisa de que eu não soube tirar o proveito que poderia ter tirado, é certo, e o Natal é uma delas, – replicou o sobrinho. – Mas, pelo menos, estou certo de ter sempre considerado o Natal – fora a veneração que inspiram sua origem e seu caráter sagrados – como uma das mais felizes épocas do ano, como um tempo de bondade e perdão, de caridade e alegria; o único tempo, que eu saiba, no decorrer de todo um ano, em que todos, homens e mulheres, parecem irmanados no mesmo comum acordo para abrir seus corações fechados e reconhecer, naqueles que estão abaixo deles, verdadeiros companheiros no caminho da vida e não criaturas diferentes, votadas a outros destinos. Assim, pois, meu tio, embora o Natal não me tenha posto nos bolsos uma única moeda de ouro ou de prata, estou convencido de que ele me fez e me fará muito bem, e é por isso que eu repito: Deus abençoe o Natal!
O empregado não pôde deixar de aplaudir, do seu cubículo, o sobrinho de Scrooge, mas, logo a seguir, caindo em si e notando sua inoportuna intromissão, pôs-se a remexer as brasas vigorosamente, acabando por apagá-las.
– Eu que o ouça mais uma vez, – disse Scrooge, – e irá festejar o Natal no olho da rua. Quanto a si, meu amigo, continuou ele voltando-se para o sobrinho, você é de fato eloqüente; estou mesmo admirado de que ainda não tenha conseguido um lugar no Parlamento.
– Não se aborreça, tio, e venha almoçar conosco amanhã.
Scrooge respondeu mandando-o para o diabo, e o fez de cara a cara.
– Mas, por quê? – exclamou o sobrinho. – Por quê?
– Por que foi que você casou? – perguntou Scrooge.
– Porque estava apaixonado.
– Porque estava apaixonado! – resmungou Scrooge. – Como se isso não fosse outra tolice maior ainda do que festejar o Natal! Passe bem!
– Mas, meu tio! O senhor nunca vinha à minha casa antes do meu casamento. Por que arranja esse pretexto para não vir hoje?
– Boa noite! – disse Scrooge.
– Eu não espero nada do senhor; eu nada lhe peço. Por que não sermos bons amigos?
– Boa noite! – disse Scrooge.
– Lamento de todo o coração vê-lo assim tão obstinado. Não temos, que eu saiba, nenhum motivo de ressentimento. Foi em homenagem ao Natal que vim até aqui, e no espírito de Natal quero ficar até o fim.
– Boa noite! – disse Scrooge.
– E feliz Ano Novo!
– Boa noite! – replicou Scrooge.
(…)
Uma Canção de Natal, de Charles Dickens

Um presente de Natal que jamais esquecerei


Um presente de Natal que jamais esquecerei

A vida de uma criança é como um pedaço de papel onde todos aqueles que passam deixam uma marca.
Provérbio chinês


Ele entrou na minha vida há vinte anos, encostado à ombreira da porta da sala 202, onde eu dava aulas ao quinto ano. Usava sapatos de borracha três vezes maiores do que os pés, calças aos quadrados rasgadas nos joelhos.
Daniel fez esta entrada banal na escola de uma aldeia bizarra, ao lado de um lago, conhecida pelo dinheiro antigo, pelas casas coloniais brancas e pelas caixas de correio de latão. Disse-nos que a última escola que frequentara ficava situada num condado vizinho.
— Colhíamos fruta — disse ele, sem rodeios.
Suspeitava de que este rapaz sorridente, amistoso e mal vestido, vindo de uma família de imigrantes, fora atirado para uma jaula de leões do quinto ano, que nunca tinham visto calças rasgadas. Se ele reparou nos risinhos, nada revelou. Não foi rude nem agressivo.
As vinte e cinco crianças do quinto ano olharam para Daniel com desconfiança até ao jogo de bola dessa tarde. Ele deu então a primeira tacada na bola. Isso mereceu-lhe um pouco de respeito dos críticos do vestiário da sala 202.
A seguir foi a vez de Charles. Charles era a criança menos atlética, a mais pesada de todo o quinto ano. Depois do segundo golpe do batedor, no meio de olhos revirados e dos gemidos da turma, Daniel aproximou-se e falou calmamente para as costas arqueadas de Charles.
— Esquece, pá. Tu és capaz.
Charles animou-se, sorriu, endireitou-se e atacou sem demora. Mas, nesse preciso momento, desafiando a ordem social daquela selva onde entrara, Daniel começou a mudar as coisas — e a mudar-nos.
No fim do Outono, todos tínhamos gravitado na sua direcção. Dava-nos todo o tipo de lições. Como atrair um peru selvagem. Como saber se a fruta está madura antes da primeira dentada. Como tratar os outros, mesmo Charles. Principalmente Charles. Nunca usava os nossos nomes, chamava-me «Menina» e aos alunos «rapazes».
No dia anterior às férias do Natal, os alunos traziam sempre presentes à professora. Era um ritual — abrir todas as caixas, observar o perfume caro ou o lenço ou a carteira de cabedal, e agradecer à criança.
Nessa tarde, Daniel aproximou-se da minha secretária e segredou-me ao ouvido:
— As caixas para a mudança chegaram ontem à noite — disse ele, sem emoção. — Partimos amanhã.
Quando percebi a notícia, os meus olhos encheram-se de lágrimas. Ele quebrou o silêncio constrangedor, falando-me da mudança. Então, quando me recompus, tirou uma pedra cinzenta do bolso. Deliberadamente e com gestos decididos, colocou-a suavemente na secretária.
Pressenti que aquilo era algo de extraordinário, mas a minha prática com perfumes e sedas deixara-me lamentavelmente desprevenida para responder.
— É para si — disse ele, fixando os olhos nos meus. — Puxei-lhe o lustro.
Nunca me esqueci dessa manhã.
Passaram anos. Todos os Natais, a minha filha pede que lhe conte esta história. Começa sempre depois de ela pegar na pequena pedra polida que está na minha secretária. Em seguida, aninha-se no meu colo e eu começo. As primeiras palavras da história nunca variam.
— A última vez que vi o Daniel, ele deu-me esta pedra como presente e falou-me das caixas. Isso foi há muito tempo, antes de tu nasceres.
— Agora já é um homem — termino. Juntas, imaginamos onde estará e o que andará a fazer.
— Aposto que é boa pessoa — diz a minha filha.
Depois acrescenta:
— Conta-me o fim da história.
Sei o que ela quer ouvir: a lição de amor e carinho aprendida por uma professora com um rapaz sem nada — e com tudo — para dar. Um rapaz que vivia no meio de caixas. Toco na pedra, recordando.
— Olá, rapaz — digo, suavemente. — Esta é a «Menina». Espero que já não precises das caixas. E feliz Natal, onde quer que estejas.
Linda DeMers Hummel, in Jack Canfield; Mark Victor Hansen, Canja de galinha para a alma – O tesouro do Natal, Mem Martins, Lyon Edições, 2002

O Cesto de Natal da Tia Cyrilla


O Cesto de Natal da tia Cyrilla

Quando Lucy Rose encontrou a tia Cyrilla a descer as escadas, algo ofegante e ruborizada pela ida ao sótão, com um cesto enorme, com tampa, enfiado no braço roliço, soltou um pequeno suspiro de desespero. Há alguns anos que Lucy Rose fazia o melhor que podia – de facto, desde que tinha prendido o cabelo e aumentado ao comprimento das saias – para que a tia Cyrilla perdesse o hábito que tinha de levar aquele cesto com ela, sempre que ia a Pembroke; mas a tia Cyrilla insistia em levá-lo e só se ria do que ela apelidava de «ideias afectadas» de Lucy Rose. Lucy Rose achava horrível e extremamente provinciano a tia carregar sempre o cesto consigo, cheio de coisas boas do campo, de cada vez que ia visitar Edward e Geraldine. Geraldine era tão elegante que talvez achasse aquilo estranho; e depois, a tia Cyrilla levava-o sempre no braço, e dava biscoitos, maçãs e chupa-chupas de melaço a todas as crianças que encontrava e, de vez em quando, também a pessoas de idade. Quando Lucy Rose ia à cidade com a tia Cyrilla, sentia-se desgostosa com isto – mas Lucy era ainda muito nova e tinha muita coisa a aprender neste mundo.
Aquela preocupação incómoda sobre o que Geraldine pensaria, encorajou-a a protestar naquele instante.
– Ora, tia Cyrilla – apelou – de certeza que, desta vez, não vai levar aquele cesto velho e esquisito consigo para Pembroke, é Dia de Natal e tudo!
– Claro, claro que vou – respondeu a tia Cyrilla, enquanto o punha em cima da mesa e começava a limpá-lo. – Nunca fui visitar o Edward e a Geraldine, desde que estão casados, sem levar o cesto das coisas boas comigo e não vai ser agora que vou deixar de o fazer. Se é Natal, mais uma razão. O Edward fica sempre muito contente por ter algumas das coisas antigas da casa da quinta. Diz que são muito superiores às cozinhadas na cidade, e são mesmo.
– Mas é tão provinciano – lamentou-se Lucy Rose.
– Bem, eu sou da província – disse a tia Cyrilla, firmemente – e tu também. E depois, não vejo motivo para sentirmos vergonha disso. Tens um amor-próprio excessivo, Lucy Rose. Com o tempo há-de passar-te, mas neste momento está a causar-te muitos problemas.
– O cesto é um problema – disse Lucy Rose, zangada. – A tia está sempre a esquecer-se dele, ou com medo de se esquecer. E parece tão estranho andar pelas ruas com esse cesto grande e bojudo no braço.
– Não estou nada preocupada com as aparências – respondeu a tia Cyrilla, calmamente. – Quanto a ser um problema, ora, talvez seja, mas é um hábito meu e outras pessoas apreciam. O Edward e a Geraldine não precisam disto – eu sei – mas pode haver quem precise. E se caminhares ao lado de uma mulher velha e provinciana, com um cesto, fere os teus sentimentos, ora, podes ficar para trás como dantes.
A tia Cyrilla meneou a cabeça e sorriu bem-humorada, e Lucy Rose, embora mantivesse a sua opinião pessoal, também teve de sorrir.
– Agora, deixa-me ver – disse a tia Cyrilla, reflectindo e batendo com a ponta do dedo indicador em cima da mesa da cozinha branca como a neve – o que levo? Para já, aquele bolo grande de frutas – o Edward gosta do meu bolo de frutas; e aquela língua cozida fria. Aquelas três tortas de carne picada, também, se não estragam-se antes de voltarmos, ou, então, o teu tio fica doente ao comê-las – torta de carne picada é o seu pecado mortal. E aquele frasco de barro cheio de natas – a Geraldine pode ter muita classe, mas ainda tenho de a ver desprezar umas natas do campo, Lucy Rose. E outro frasco do meu vinagre de framboesa. Aquele prato de biscoitos de geleia e dónutes vão agradar às crianças e encher os pequenos espaços vazios, e podes trazer-me aquela caixa de caramelos que está na despensa e aquele saco de barras de bombons às riscas que o teu tio me trouxe, ontem à noite, ali da esquina. E maçãs, claro – três ou quatro dúzias daquelas boas – e um frasquinho da minha compota de ameixa rainha-cláudia – o Edward vai gostar. E algumas sanduíches e bolo inglês para um lanche para nós. Agora, acho que de mantimentos já chega. Os presentes para as crianças podem ir por cima. Tenho uma boneca para a Daisy, um barquinho que o teu tio fez para o Ray, um lenço de mão em renda de bilros para cada um dos gémeos e a touca de crochet para o bebé. Agora está tudo?
– Há uma galinha assada fria na despensa – disse Lucy Rose com mal dade – e o porco, que o tio Leo matou, está dependurado no alpendre. Também quer metê-los aí dentro?
A tia Cyrilla exibiu um sorriso amplo.
– Bem, acho que deixamos o porco em paz; mas uma vez que me lembraste, a galinha também pode ir. Arranjo espaço.
Apesar dos preconceitos, Lucy Rose ajudou a embalar e, mesmo não tendo sido supervisionada pelo olho da tia Cyrilla, fez tudo muito bem, com muita inteligência e economia de espaço. Mas depois de a tia Cyrilla ter colocado, como toque de acabamento, um ramo de perpétuas cor-de-rosa e brancas e fechado as tampas bojudas com mão firme, Lucy Rose ficou junto do cesto e murmurou vingativamente:
– Um dia, vou queimar este cesto – quando tiver coragem suficiente. Então, será o fim e deixará de o levar consigo para todo o lado, como uma velha vendedora da praça.
O tio Leopold entrou naquele preciso momento, meneando a cabeça com ar de dúvida. Não iria passar o Natal com Edward e Geraldine, e talvez a perspectiva de cozinhar e de comer o seu jantar de Natal sozinho o deixasse pessimista.
– Desconfio, que vocês não vão conseguir chegar a Pembroke amanhã – disse com sabedoria. – Vem aí uma tempestade.
A tia Cyrilla não se preocupou com isso. Acreditava que assuntos deste tipo estavam predeterminados, e dormiu tranquilamente. Mas Lucy Rose levantou-se três vezes durante a noite para ver se havia temporal e, quando adormeceu, teve pesadelos horríveis com lutas no meio de tempestades de neve ofuscante que arrastavam para longe o cesto da tia Cyrilla.
De manhã cedo, não estava a nevar e o tio Leopold levou a tia Cyrilla, Lucy Rose e o cesto até à estação, que ficava a quatro quilómetros de distância. Quando chegaram lá, o ar estava carregado de flocos flutuantes. O chefe da estação vendeu os bilhetes com um ar mal-disposto.
– Se vier mais neve, os comboios talvez atrapalhem o Natal – disse. – Tem nevado tanto que o tráfico já está a ficar bloqueado, e é difícil retirar a neve para restabelecer a circulação.
A tia Cyrilla disse que, se estivesse previsto que o comboio chegasse a tempo do Natal a Pembroke, chegaria; abriu o cesto e deu ao chefe da estação e a três rapazinhos uma maçã a cada um.
– Isto é só o começo – suspirou fundo Lucy Rose.
Quando o comboio delas chegou, a tia Cyrilla instalou-se num banco, colocou o cesto no outro e olhou sorridente à sua volta para os companheiros de viagem.
Havia poucos – uma mulher delicada ao fundo da carruagem, com um bebé e mais quatro crianças, uma jovem no meio do corredor com um rosto pálido e bonito, um rapaz, três bancos à frente, vestido com um uniforme caqui, uma senhora muito elegante com um casaco de pele de foca, na frente dele, e um homem jovem, magro e de óculos, do lado oposto.
– Um sacerdote – reflectiu a tia Cyrilla, começando a classificar – que cuida melhor da alma dos outros do que do seu próprio corpo; e aquela mulher de casaco de pele de foca está triste e zangada com alguma coisa – talvez se tenha levantado demasiado cedo para apanhar o comboio; e aquele jovem companheiro deve ser um dos que saíram há pouco tempo do hospital. Os filhos daquela mulher é como se não tivessem comido uma refeição decente desde que nasceram; e se aquela rapariga do outro lado tem mãe, gostaria de saber o que significa deixar a filha sair de casa, com este tempo, com uma roupa daquelas.
Lucy Rose apenas se perguntava desconfortavelmente o que pensariam os outros do cesto da tia Cyrilla.
Contavam chegar a Pembroke naquela noite, mas à medida que o dia passava, a tempestade cada vez se tornava mais violenta. O comboio parou duas vezes para que os ajudantes retirassem a neve. À terceira vez não conseguiu continuar. Estava escuro quando o condutor deu uma volta pelo comboio, respondendo bruscamente às perguntas dos passageiros ansiosos.
– Uma boa vigia para o Natal – não, é impossível continuar ou voltar – o caminho está bloqueado durante milhas – o que é isso minha senhora? – não, não existe nenhuma estação perto – só existem milhas de bosque. Ficamos aqui esta noite. Estas últimas tempestades têm causado muitos prejuízos em tudo.
– Oh, meu Deus – suspirou Lucy Rose.
A tia Cyrilla olhou para o cesto com satisfação.
– De qualquer forma, não morreremos de fome – disse.
A rapariga bonita e pálida parecia indiferente. A senhora com o casaco de pele de foca parecia mais zangada do que nunca. O rapaz de caqui disse «só a minha sorte» e duas das crianças começaram a chorar. A tia Cyrilla tirou do cesto algumas maçãs e barras de caramelos às riscas, e deu-lhos. Pôs o mais velho no seu colo amplo, e rapidamente os tinha todos à sua volta, rindo satisfeitos.
Os passageiros restantes afastaram-se para um canto e começaram a falar casualmente. O rapaz de caqui disse que, afinal de contas, era pouca sorte não chegar a casa para o Natal.
– Fui, há três meses, afastado do serviço militar na África do Sul por invalidez, e desde então, tenho estado no hospital. Cheguei a Halifax há três dias e telegrafei aos meus velhos amigos a dizer que jantaria com eles no dia de Natal e que tivessem um perú de tamanho extra, porque não comi nenhum o ano passado. Vão ficar extremamente desapontados.
O rapaz também parecia desapontado. Uma das mangas do uniforme caqui estava vazia. A tia Cyrilla passou-lhe uma maçã.
– Nós íamos todos passar o Natal a casa do avô – disse, com tristeza, o filho mais velho da jovem mãe. – Nunca lá estivemos antes. É terrível!
Parecia que queria chorar, mas pensou melhor no assunto e encheu a boca com mais uma dentada de rebuçado.
– Será que vai haver Pai Natal no comboio? – perguntou a irmã pequena a chorar. – O Jack diz que não.
– Tenho a certeza de que o Pai Natal vai descobrir-te – disse a tia Cyrilla de uma forma tranquilizadora.
A jovem bonita e pálida aproximou-se e tirou o bebé à mãe cansada.
– Que coisinha fofa – disse com meiguice.
– Também vais a casa passar o Natal? – perguntou a tia Cyrilla.
A rapariga meneou a cabeça.
– Não tenho casa. Neste momento, não passo de uma empregada de balcão sem trabalho, e vou até Pembroke para procurar um.
A tia Cyrilla dirigiu-se ao cesto e tirou a caixa de caramelos de nata.
– Penso que também devemos divertir-nos. Vamos comer tudo e passar o tempo da melhor maneira possível. Talvez cheguemos a Pembroke de manhã.
O pequeno grupo começou a ficar cada vez mais animado à medida que petiscavam, e até a rapariga pálida ficou mais alegre. A jovem mãe contou a sua história à tia Cyrilla. Tinha sido afastada da família há muito tempo, porque não estavam de acordo com o seu casamento. O marido tinha morrido no Verão passado e deixou-a em circunstâncias muito precárias.
– O meu pai escreveu-me a semana passada e pediu-me para esquecer o passado e vir a casa passar o Natal. Fiquei tão contente. E as crianças não pensavam em outra coisa. É horrível não conseguir lá chegar. Tenho de voltar para o emprego na manhã a seguir ao Natal.
O rapaz de caqui aproximou-se de novo e partilhou do caramelo. Contou histórias divertidas sobre as operações militares na África do Sul. O sacerdote também se aproximou e ficou a ouvir, e até a senhora do casaco de pele de foca olhou para trás.
Mais tarde, as crianças adormeceram, uma no colo da tia Cyrilla, outra no de Lucy Rose e duas no banco do comboio. A tia Cyrilla e a rapariga pálida ajudaram a mãe a fazer camas para eles. O sacerdote cedeu o sobretudo e a senhora do casaco de pele de foca aproximou-se com um xaile.
– Isto serve para o bebé – disse.
– Temos de arranjar um Pai Natal para estes jovens – disse o rapaz de caqui. – Vamos pendurar as meias deles na parede e enchê-las o melhor que pudermos. Não tenho mais nada, a não ser umas moedas e um canivete.
– Eu também só tenho dinheiro – disse a senhora do casaco de pele de foca. A tia Cyrilla olhou para a jovem mãe. Tinha adormecido com a cabeça encostada às costas do banco.
– Tenho ali um cesto – disse a tia Cyrilla com firmeza – e tenho lá alguns presentes que estavam destinados aos filhos do meu sobrinho. Vou dá-los a estas crianças. Quanto ao dinheiro, penso que a mãe está a precisar. Contou-me a sua história e é digna de pena. Vamos fazer uma colecta entre nós para um presente de Natal.
A ideia foi bem acolhida. O rapaz de caqui passou o boné e todos contribuíram. A senhora de casaco de pele de foca colocou lá uma nota amarrotada. Quando a tia Cyrilla a endireitou, viu que se tratava de uma nota de vinte dólares.
Entretanto, Lucy Rose tinha trazido o cesto. Sorriu para a tia Cyrilla, enquanto o arrastava até ao corredor, e a tia Cyrilla devolveu-lhe o sorriso. Lucy Rose nunca tinha tocado naquele cesto por iniciativa própria.
O barco de Ray foi para Jack, a boneca de Daisy para a irmã mais velha, os lenços de mão de renda dos gémeos para as duas meninas mais pequenas e o gorro para o bebé. Depois, as meias foram enchidas com dónutes e biscoitos de geleia, e o dinheiro foi colocado dentro de um envelope e preso com um alfinete ao casaco da jovem mãe.
– Aquele bebé é tão fofinho – disse a senhora do casaco de pele de foca. Faz-me lembrar o meu filhinho. Morreu há dezoito natais.
A tia Cyrilla pôs a mão em cima da luva de pelica da senhora. – O meu também – disse.
E depois, as duas mulheres sorriram com ternura uma para a outra. Mais tarde, descansaram um pouco das tarefas e todos comeram o que a tia Cyrilla chama um «lanche» de sanduíches e bolo inglês. O rapaz de caqui disse que nunca tinha provado nada nem de longe tão bom, desde que saíra de casa.
– Na África do Sul não nos davam bolo inglês – disse.
Quando amanheceu, a tempestade ainda era intensa. As crianças acordaram e ficaram loucas de alegria com as meias. A jovem mãe encontrou o envelope e tentou exprimir um agradecimento, mas não conseguiu; e ninguém sabia o que dizer, nem o que fazer, quando, felizmente, o condutor veio fazer uma digressão para lhes dizer que talvez tivessem de se conformar com a ideia de passar o Natal no comboio.
– Isto é grave – disse o rapaz de caqui – considerando que não temos provisões. Por mim não há problema, estou habituado a rações de combate, ou até a nenhuma. Mas estas crianças vão ter um apetite enorme.
Então, a Tia Cyrilla mostrou-se à altura para a ocasião.
– Tenho aqui algumas rações de emergência – anunciou. – Há comida suficiente para todos e vamos ter o nosso jantar de Natal, embora frio. Primeiro, o pequeno-almoço. Há uma sanduíche para cada um e só temos de completar com o que sobrou de biscoitos e dónutes, e guardar o resto para uma refeição verdadeiramente boa ao jantar. A única coisa que não tenho é pão.
– Tenho uma caixa de bolachas de água e sal – disse a jovem mãe, ansiosa.
Ninguém na carruagem iria esquecer aquele Natal. Para começar, depois do pequeno-almoço, tiveram um concerto. O rapaz de caqui deu dois recitais, cantou três canções e fez um solo de assobio. Lucy Rose deu dois recitais e o sacerdote fez uma leitura de histórias cómicas. A pálida empregada de balcão cantou duas canções. Todos concordaram que o solo de assobio do rapaz de caqui tinha sido o melhor número, e a tia Cyrilla deu-lhe um ramo de perpétuas como prémio de mérito.
Depois, o maquinista veio com notícias mais animadoras, dizendo que a tempestade estava quase a passar e que pensava que o caminho ficaria livre dentro de algumas horas.
– Se conseguirmos chegar até à próxima estação, ficaremos todos bem – disse. – O ramal une-se ali à linha principal e os trilhos estarão limpos.
À tardinha, jantaram. Os ajudantes do comboio foram convidados a participar. O sacerdote trinchou a galinha com o canivete do homem do vagão do travão e o rapaz de caqui cortou a língua e as tortas, enquanto a senhora do casaco de pele de foca misturava o vinagre de framboesa com a devida proporção de água. Pedaços de papel serviram de pratos. O comboio forneceu dois copos, e foi encontrada uma lata de meio litro de água e dada às crianças.
Todos declararam que nunca tinham desfrutado tanto de uma refeição em toda a sua vida. Foi, de facto, uma refeição muito divertida, e os cozinhados da tia Cyrilla nunca foram tão apreciados; de facto, só sobraram os ossos da galinha e os frascos das compotas. Não puderam comer as compotas, porque não tinham colheres, por isso, a tia Cyrilla deu-as à jovem mãe.
Quando tudo terminou, foi feito um voto sincero de agradecimento à tia Cyrilla e ao seu cesto. A senhora do casaco de pele de foca quis saber como é que ela fazia o bolo inglês e o rapaz de caqui pediu-lhe a receita dos biscoitos de geleia. E quando, duas horas mais tarde, o maquinista veio anunciar que o limpa-neve tinha chegado e que, em breve, retomariam o caminho, todos se interrogaram se só teriam passado menos de vinte e quatro horas desde que se conheceram.
– Sinto que estive com a senhora no campo de batalha toda a minha vida – disse o rapaz de caqui.
Saíram todos na primeira estação. A jovem mãe e os filhos tiveram de apanhar o comboio seguinte de volta para casa. O sacerdote ficou ali, o rapaz de caqui e a senhora do casaco de pele de foca mudaram de comboio. A senhora do casaco de pele de foca deu um cumprimento de mão à tia Cyrilla. Não voltara a mostrar-se triste nem zangada.
– Foi o Natal mais agradável que alguma vez passei – disse com convicção. – Nunca irei esquecer-me desse seu cesto maravilhoso. A empregadinha de balcão vai para minha casa. Prometi-lhe um lugar na loja do meu marido.
Quando a tia Cyrilla e Lucy Rose chegaram a Pembroke, não havia ninguém à espera delas, pois todos haviam desistido. A casa de Edward não era muito longe da estação e a tia Cyrilla decidiu ir a pé.
– Eu levo o cesto – disse Lucy Rose.
A tia Cyrilla acedeu com um sorriso. Lucy Rose sorriu também.
– É um velho cesto abençoado – disse a última – e adoro-o. Por favor, esqueça todas as patetices que sempre disse sobre ele, tia Cyrilla.
L. M. Montgomery, in Ian Whybrow (org.), O grande livro do Natal, Porto, Edições Asa, 2004, Adaptação

Noite de Natal


O amigo
Era uma vez uma casa pintada de amarelo com um jardim à volta.
No jardim havia tílias, bétulas, um cedro muito antigo, uma cerejeira e dois plátanos. Era debaixo do cedro que Joana brincava. Com musgo e ervas e paus fazia muitas casas pequenas encostadas ao grande tronco escuro. Depois imaginava os anõezinhos que, se existissem, poderiam morar naquelas casas. E fazia uma casa maior e mais complicada para o rei dos anões.
Joana não tinha irmãos e brincava sozinha. Mas de vez em quando vinham brincar os dois primos ou outros meninos. E, às vezes, ela ia a uma festa. Mas esses meninos a casa de quem ela ia e que vinham a sua casa não eram realmente amigos: eram visitas. Faziam troça das suas casas de musgo e maçavam-se imenso no seu jardim.
E Joana tinha muita pena de não saber brincar com os outros meninos. Só sabia estar sozinha.
Mas um dia encontrou um amigo. Foi numa manhã de Outubro.
Joana estava encarrapitada no muro. E passou pela rua um garoto. Estava todo vestido de remendos e os seus olhos brilhavam como duas estrelas. Caminhava devagar pela beira do passeio sorrindo às folhas do Outono. O coração de Joana deu um pulo na garganta.
— Ah! — disse ela. E pensou: «Parece um amigo. É exactamente igual a um amigo.» E do alto do muro chamou-o:
— Bom dia!
O garoto voltou a cabeça, sorriu e respondeu:
— Bom dia!
Ficaram os dois um momento calados.
Depois Joana perguntou:
— Como é que te chamas?
— Manuel — respondeu o garoto.
— Eu chamo-me Joana.
E de novo entre os dois, leve e aéreo, passou um silêncio. Ouviu-se tocar ao longe o sino de uma quinta. Até que o garoto disse:
— O teu jardim é muito bonito.
— É, vem ver.
Joana desceu do muro e foi abrir o portão.
E foram os dois pelo jardim fora. O rapazinho olhava uma por uma cada coisa. Joana mostrou-lhe o tanque e os peixes vermelhos. Mostrou-lhe o pomar, as laranjeiras e a horta. E chamou os cães para ele os conhecer. E mostrou-lhe a casa da lenha onde dormia um gato. E mostrou-lhe todas as árvores e as relvas e as flores.
— É lindo, é lindo — dizia o rapazinho gravemente.
— Aqui — disse Joana — é o cedro. É aqui que eu brinco.
E sentaram-se sob a sombra redonda do cedro.
A luz da manhã rodeava o jardim: tudo estava cheio de paz e de frescura. Às vezes do alto de uma tília caía uma folha amarela que dava voltas no ar.
Joana foi buscar pedras, paus e musgo e começaram os dois a construir a casa do rei dos anões.
Brincaram assim durante muito tempo.
Até que ao longe apitou uma fábrica.
— Meio-dia — disse o garoto — tenho de me ir embora.
— Onde é que tu moras?
— Além nos pinhais.
— É lá a tua casa?
— É, mas não é bem uma casa.
— Então?
— O meu pai está no céu. Por isso somos muito pobres. A minha mãe trabalha todo o dia mas não temos dinheiro para ter uma casa.
— Mas à noite onde é que dormes?
— O dono dos pinhais tem uma cabana onde de noite dormem uma vaca e um burro. E por esmola dá-me licença de dormir ali também.
— E onde é que brincas?
— Brinco em toda a parte. Dantes morávamos no centro da cidade e eu brincava no passeio e nas valetas. Brincava com latas vazias, com jornais velhos, com trapos e com pedras. Agora brinco no pinhal e na estrada. Brinco com as ervas, com os animais e com as flores. Pode-se brincar em toda a parte.
— Mas eu não posso sair deste jardim. Volta amanhã para brincar comigo.
E daí em diante todas as manhãs o rapazinho passava pela rua. Joana esperava-o empoleirada em cima do muro.
Abria-lhe a porta e iam os dois sentar-se sob a sombra redonda do cedro.
E foi assim que Joana encontrou um amigo.
Era um amigo maravilhoso. As flores voltavam as suas corolas quando ele passava, a luz era mais brilhante em seu redor e os pássaros vinham comer na palma das suas mãos as migalhas de pão que Joana ia buscar à cozinha.

A festa
Passaram muitos dias, passaram muitas semanas até que chegou o Natal.
E no dia de Natal Joana pôs o seu vestido de veludo azul, os seus sapatos de verniz preto e muito bem penteada às sete e meia saiu do quarto e desceu a escada.
Quando chegou ao andar de baixo ouviu vozes na sala grande; eram as pessoas crescidas que estavam lá dentro. Mas Joana sabia que tinham fechado a porta para ela não entrar. Por isso foi à casa de jantar ver se já lá estavam os copos.
Os copos passavam a sua vida fechados dentro de um grande armário de madeira escura que estava no meio do corredor. Esse armário tinha duas portas que nunca se abriam completamente e uma grande chave. Lá dentro havia sombras e brilhos. Era como o interior de uma caverna cheia de maravilhas, e segredos. Estavam lá fechadas muitas coisas, coisas que não eram precisas para a vida de todos os dias, coisas brilhantes e um pouco encantadas: loiças, frascos, caixas, cristais e pássaros de vidro. Até havia um prato com três maçãs de cera e uma menina de prata que era uma campainha. E também um grande ovo de Páscoa feito de loiça encarnada com flores doiradas.
Joana nunca tinha visto bem até ao fundo do armário. Não tinha licença de o abrir. Só conseguia que a criada às vezes a deixasse espreitar entre as duas portas.
Nos dias de festa, do fundo das sombras do interior do armário saíam os copos. Saíam claros, transparentes e brilhantes tilintando no tabuleiro. E para Joana aquele barulho de cristal a tilintar era a música das festas.
Joana deu uma volta à roda da mesa. Os copos já lá estavam, tão frios e luminosos que mais pareciam vindos do interior de uma fonte de montanha do que do fundo de um armário. As velas estavam acesas e a sua luz atravessava o cristal. Em cima da mesa havia coisas maravilhosas e extraordinárias: bolas de vidro, pinhas douradas e aquela planta que tem folhas com picos e bolas encarnadas. Era uma festa. Era o Natal.
Então Joana foi ao jardim. Porque ela sabia que nas Noites de Natal as estrelas são diferentes.
Abriu a porta e desceu a escada da varanda. Estava muito frio, mas o próprio frio brilhava. As folhas das tílias, das bétulas e das cerejeiras tinham caído. Os ramos nus desenhavam-se no ar como rendas pretas. Só o cedro tinha os seus ramos cobertos.
E muito alto, por cima das árvores, era a escuridão enorme e redonda do céu. E nessa escuridão as estrelas cintilavam, mais claras do que tudo. Cá em baixo era uma festa e por isso havia muitas coisas brilhantes: velas acesas, bolas de vidro, copos de cristal. Mas no céu havia uma festa maior, com milhões e milhões de estrelas.
Joana ficou algum tempo com a cabeça levantada. Não pensava em nada. Olhava a imensa felicidade da noite no alto céu escuro e luminoso, sem nenhuma sombra.
Depois voltou para casa e fechou a porta. — Ainda falta muito tempo para o jantar? — perguntou ela a uma criada que ia a atravessar o corredor.
— Ainda falta um bocadinho, menina — disse a criada. Então Joana foi à cozinha ver a cozinheira Gertrudes, que era uma pessoa extraordinária porque mexia nas coisas quentes sem se queimar e nas facas mais aguçadas sem se cortar, e mandava em tudo, e sabia tudo. Joana achava-a a pessoa mais importante que ela conhecia.
A Gertrudes tinha aberto o forno e estava debruçada sobre os dois perus do Natal. Virava-os e regava-os com molho. A pele dos perus, muito esticada sobre o peito recheado, já estava toda doirada.
— Gertrudes, ouve uma coisa — disse Joana.
A Gertrudes levantou a cabeça e parecia tão assada como os perus.
— O que é? — perguntou ela.
— Que presentes é que achas que eu vou ter?
— Não sei — disse Gertrudes —, não posso adivinhar.
Mas Joana tinha a maior confiança na sabedoria de Gertrudes e por isso continuou a fazer perguntas.
— E achas que o meu amigo vai ter muitos presentes?
— Qual amigo? — disse a cozinheira.
— O Manuel.
— O Manuel não. Não vai ter presentes nenhuns.
— Não vai ter presentes nenhuns!?
— Não — disse a Gertrudes abanando a cabeça.
— Mas porquê, Gertrudes?
— Porque é pobre. Os pobres não têm presentes.
— Isso não pode ser, Gertrudes.
— Mas é assim mesmo — disse a Gertrudes fechando a tampa do forno.
Joana ficou parada no meio da cozinha. Tinha compreendido que era «assim mesmo».
Porque ela sabia que a Gertrudes conhecia o mundo. Todas as manhãs a ouvia discutir com o homem do talho, com a peixeira e com a mulher da fruta. E ninguém a podia enganar. Porque ela era cozinheira há trinta anos. E há trinta anos que ela se levantava às sete da manhã e trabalhava até às onze da noite. E sabia tudo o que se passava na vizinhança e tudo o que se passava dentro das casas de toda a gente. E sabia todas as notícias, e todas as histórias das pessoas. E conhecia todas as receitas de cozinha, sabia fazer todos os bolos e conhecia todas as espécies de carnes, de peixes, de frutas e de legumes. Ela nunca se enganava. Conhecia bem o mundo, as coisas e os homens.
Mas o que a Gertrudes tinha dito era esquisito como uma mentira. Joana ficou calada a cismar no meio da cozinha.
De repente abriu-se a porta e apareceu uma criada que disse:
— Já chegaram os primos.
Então Joana foi ter com os primos.
Daí a uns minutos apareceram as pessoas grandes e foram todos para a mesa.
Tinha começado a festa do Natal.
Havia no ar um cheiro de canela e de pinheiro. Em cima da mesa tudo brilhava: as velas, as facas, os copos, as bolas de vidro, as pinhas doiradas. E as pessoas riam e diziam umas às outras: «Bom Natal». Os copos tilintavam com um barulho de alegria e de festa. E vendo tudo isto Joana pensava:
— Com certeza que a Gertrudes se enganou. O Natal é uma festa para toda a gente. Amanhã o Manuel vai-me contar tudo. Com certeza que ele também tem presentes.
E consolada com esta esperança Joana voltou a ficar quase tão alegre como antes.
O jantar do Natal era igual ao de todos os anos.
Primeiro veio a canja, depois o bacalhau assado, depois os perus, depois os pudins de ovos, depois as rabanadas, depois os ananases.
No fim do jantar levantaram-se todos, abriu-se de par em par a porta e entraram na sala.
As luzes eléctricas estavam apagadas. Só ardiam as velas do pinheiro.
Joana tinha nove anos e já tinha visto nove vezes a árvore do Natal. Mas era sempre como se fosse a primeira vez. Da árvore nascia um brilhar maravilhoso que pousava sobre todas as coisas. Era como se o brilho de uma estrela se tivesse aproximado da Terra. Era o Natal. E por isso uma árvore se cobria de luzes e os seus ramos se carregavam de extraordinários frutos em memória da alegria que, numa noite muito antiga, se tinha espalhado sobre a Terra.
E no presépio as figuras de barro, o Menino, a Virgem, São José, a vaca e o burro, pareciam continuar uma doce conversa que jamais tinha sido interrompida. Era uma conversa que se via e não se ouvia.
Joana olhava, olhava, olhava.
Às vezes lembrava-se do seu amigo Manuel.
Um dos primos puxou-a por um braço.
— Joana, ali estão os teus presentes.
Joana abriu um por um os embrulhos e as caixas: a boneca, a bola, os livros cheios de desenhos a cores, a caixa de tintas.
À sua volta todos riam e conversavam.
Todos mostravam uns aos outros os presentes que tinham tido, falando ao mesmo tempo.
E Joana pensava:
— Talvez o Manuel tenha tido um automóvel.
E a festa do Natal continuava.
As pessoas grandes sentaram-se nas cadeiras e nos sofás a conversar e as crianças sentaram-se no chão a brincar.
Até que alguém disse:
— São onze horas e meia. São quase horas da missa. E são horas de as crianças se irem deitar.
Então as pessoas começaram a sair.
O pai e a mãe de Joana também saíram.
— Boa noite, minha querida. Bom Natal — disseram eles.
E a porta fechou-se.
Daí a um instante saíram as criadas.
A casa ficou muito silenciosa. Tinham ido todos para a Missa do Galo, menos a velha Gertrudes, que estava na cozinha a arrumar as panelas.
E Joana foi à cozinha. Era a altura boa para falar com a Gertrudes.
— Bom Natal, Gertrudes — disse Joana.
— Bom Natal — respondeu a Gertrudes. Joana calou-se um momento. Depois perguntou:
— Gertrudes, aquilo que disseste antes do jantar é verdade?
— O que é que eu disse?
— Disseste que o Manuel não ia ter presentes de Natal porque os pobres não têm presentes.
— Está claro que é verdade. Eu não digo fantasias: não teve presentes, nem árvore do Natal, nem peru recheado, nem rabanadas. Os pobres são os pobres. Têm a pobreza.
— Mas então o Natal dele como foi?
— Foi como nos outros dias.
— E como é nos outros dias?
— Uma sopa e um bocado de pão.
— Gertrudes, isso é verdade?
— Está claro que é verdade. Mas agora era melhor que a menina se fosse deitar porque estamos quase na meia-noite.
— Boa noite — disse Joana. E saiu da cozinha.
Subiu a escada e foi para o seu quarto. Os seus presentes de Natal estavam em cima da cama. Joana olhou-os um por um. E pensava:
— Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas e livros. São tal e qual os presentes que eu queria. Deram-me tudo o que queria. Mas ao Manuel ninguém deu nada.
E sentada na beira da cama, ao lado dos presentes, Joana pôs-se a imaginar o frio, a escuridão e a pobreza. Pôs-se a imaginar a Noite de Natal naquela casa que não era bem uma casa, mas um curral de animais.
«Que frio lá deve estar!», pensava ela.
«Que escuro lá deve estar!», pensava ela.
«Que triste lá deve estar!», pensava.
E começou a imaginar o curral gelado e sem nenhuma luz onde Manuel dormia em cima das palhas, aquecido só pelo bafo de uma vaca e de um burro.
— Amanhã vou-lhe dar os meus presentes — disse ela. Depois suspirou e pensou:
«Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite de Natal.»
Foi à janela, abriu as portadas e através dos vidros espreitou a rua. Ninguém passava. O Manuel estava a dormir. Só viria na manhã seguinte. Ao longe via-se uma grande sombra escura: era o pinhal.
Então ouviu, vindas da Torre da Igreja, fortes e claras, as doze pancadas da meia-noite.
«Hoje», pensou Joana, «tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora, esta noite. Para que ele tenha presentes na Noite de Natal.»
Foi ao armário tirou um casaco e vestiu-o. Depois pegou na bola, na caixa de tintas e nos livros. Apetecia-lhe levar também a boneca, mas ele era um rapaz e com certeza não gostava de bonecas.
Pé ante pé Joana desceu a escada. Os degraus estalaram um por um. Mas na cozinha a Gertrudes fazia muito barulho a arrumar as panelas e não a ouviu.
Na sala de jantar havia uma porta que dava para o jardim. Joana abriu-a e saiu, deixando-a ficar só fechada no trinco.
Depois atravessou o jardim. O Alex e a Ghiribita ladraram.
— Sou eu, sou eu — disse Joana.
E os cães, ouvindo a sua voz, calaram-se.
Então Joana abriu a porta do jardim e saiu.

A estrela
Quando se viu sozinha no meio da rua teve vontade de voltar para trás. As árvores pareciam enormes e os seus ramos sem folhas enchiam o céu de desenhos iguais a pássaros fantásticos. E a rua parecia viva. Estava tudo deserto. Àquela hora não passava ninguém. Estava toda a gente na Missa do Galo. As casas, dentro dos seus jardins, tinham as portas e as janelas fechadas. Não se viam pessoas, só se viam coisas. Mas Joana tinha a impressão de que as coisas a olhavam e a ouviam como pessoas.
«Tenho medo», pensou ela.
Mas resolveu caminhar para a frente sem olhar para nada.
Quando chegou ao fim da rua virou à direita e meteu a um atalho entre dois muros. E no fim do atalho encontrou os campos, planos e desertos. Ali, sem muros nem árvores nem casas, a noite via-se melhor. Uma noite altíssima e redonda e toda brilhante.
O silêncio era tão forte que parecia cantar. Muito ao longe via-se a massa escura dos pinhais.
«Será possível que eu chegue até lá?», pensou Joana.
Mas continuou a caminhar.
Os seus pés enterravam-se nas ervas geladas. Ali no descampado soprava um curto vento de neve que lhe cortava a cara como uma faca.
«Tenho frio», pensou Joana.
Mas continuou a caminhar.
À medida que se ia aproximando dele, o pinhal ia-se tornando maior. Até que ficou enorme.
Joana parou um instante no meio dos campos.
«Para que lado ficará a cabana?», pensou ela.
E olhava em todas as direcções à procura de um rasto.
Mas à sua direita não havia rasto, à sua esquerda não havia rasto e à sua frente não havia rasto.
«Como é que hei-de encontrar o caminho?», perguntava ela.
E levantou a cabeça.
Então viu que no céu, lentamente, uma estrela caminhava.
«Esta estrela parece um amigo», pensou ela.
E começou a seguir a estrela.
Até que penetrou no pinhal. Então num instante as sombras fizeram uma roda à sua volta. Eram enormes, verdes, roxas, pretas e azuis, e dançavam com grandes gestos. E a brisa passava entre as agulhas dos pinheiros, que pareciam murmurar frases incompreensíveis. E vendo-se assim rodeada de vozes e de sombras Joana teve medo e quis fugir. Mas viu que no céu, muito alto, para além de todas as sombras, a estrela continuava a caminhar. E seguiu a estrela.
Já no meio do pinhal pareceu-lhe ouvir passos.
«Será um lobo?», pensou.
Parou a escutar. O barulho dos passos aproximava-se. Até que viu surgir entre os pinheiros um vulto muito alto que vinha caminhando ao seu encontro.
«Será um ladrão?», pensou.
Mas o vulto parou na sua frente e ela viu que era um rei. Tinha na cabeça uma coroa de oiro e dos seus ombros caía um longo manto azul todo bordado de diamantes.
— Boa noite — disse Joana.
— Boa noite — disse o rei. — Como te chamas?
— Eu, Joana — disse ela.
— Eu chamo-me Melchior — disse o rei. E perguntou:
— Onde vais sozinha a esta hora da noite?
— Vou com a estrela — disse ela.
— Também eu — disse o rei —, também eu vou com a estrela.
E juntos seguiram através do pinhal.
E de novo Joana ouviu passos. E um vulto surgiu entre as sombras da noite.
Tinha na cabeça uma coroa de brilhantes e dos seus ombros caía um grande manto vermelho coberto de muitas esmeraldas e safiras.
— Boa noite — disse ela. — Chamo-me Joana e vou com a estrela.
— Também eu — disse o rei —, também eu vou com a estrela e o meu nome é Gaspar.
E seguiram juntos através dos pinhais. E mais uma vez Joana ouviu um barulho de passos e um terceiro vulto surgiu entre as sombras azuis e os pinheiros escuros.
Tinha na cabeça um turbante branco e dos seus ombros caía um longo manto verde bordado de pérolas. A sua cara era preta.
— Boa noite — disse ela. — O meu nome é Joana. E vamos com a estrela.
— Também eu — disse o rei — caminho com a estrela e o meu nome é Baltasar.
E juntos seguiram os quatro através da noite.
No chão, os galhos secos estalavam sob os passos, a brisa murmurava entre as árvores e os grandes mantos bordados dos três reis do Oriente brilhavam entre as sombras verdes, roxas e azuis.
Já quase no fundo dos pinhais viram ao longe uma claridade. E sobre essa claridade a estrela parou. E continuaram a caminhar.
Até que chegaram ao lugar onde a estrela tinha parado e Joana viu um casebre sem porta. Mas não viu escuridão, nem sombra, nem tristeza. Pois o casebre estava cheio de claridade, porque o brilho dos anjos o iluminava.
E Joana viu o seu amigo Manuel. Estava deitado nas palhas entre a vaca e o burro e dormia sorrindo.
Em sua roda, ajoelhados no ar, estavam os anjos. O seu corpo não tinha nenhum peso e era feito de luz sem nenhuma sombra.
E com as mãos postas os anjos rezavam ajoelhados no ar.
Era assim, à luz dos anjos, o Natal de Manuel.
— Ah — disse Joana — aqui é como no presépio!
— Sim — disse o rei Baltasar — aqui é como no presépio.
Então Joana ajoelhou-se e poisou no chão os seus presentes.

Sophia de Mello Breyner Andresen, A Noite de Natal, Porto, Figueirinhas, 1989, adaptado

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Do Gustavo


O que é, para mim, a Magia?

A magia, para mim, é uma coisa impressionante, mas muitas vezes é mentira, porque são truques que as pessoas fazem para enganar os outros. Eu acho que ninguém consegue ler o futuro das pessoas, nem sequer com força de vontade. Essas pessoas só servem para levar dinheiro aos outros, mas enganam com as coisas que inventam.
As bolas mágicas, não sei quem as inventou, mas fez com que as pessoas caíssem nesse truque e ainda hoje há muitas pessoas que pagam a outras que fazem magia e dizem que o que pedem acontece.
Muitas pessoas, que não se dão bem umas com as outras, vão às bruxas para rogar pragas às outras, mas eu não acredito nisso. Porém, quase toda a gente fica logo cheia de medo por causa disso.

Do Maksym


O que é, para mim, a Magia?
Magia para mim é uma coisa que não existe. E é inventada por pessoas, que fazem acreditar que a magia existe. Como, por exemplo, nos circos fazem parecer que tudo é magia, a tirar do chapéu coelhos, pombos, e outros animais… mas não, é só um simples truque. A magia não existiu, não existe, e não vai existir.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Da Patrícia Rodrigues



O que é, para mim, a magia?
Para mim, a magia não é tirar coelhos do chapéu, nem nada do género. Magia é uma coisa quase impossível de acontecer, mas que, no entanto, pode acontecer. É nós desejarmos muito uma coisa e ela acontecer, sem explicação lógica.
Sim, eu acho que é possível alterarmos a realidade apenas com a nossa vontade, só temos de acreditar para que isso aconteça. O conto é um bom exemplo, uma vez que, apesar de as pessoas saberem que uma coisa é inofensiva, sentem-se afectadas por ela.
Para mim, isto é magia, é o poder que nós temos de alterar o verdadeiro significado das coisas, é a nossa capacidade para alterar a realidade.
Apesar de eu já ter dito que a magia é quase impossível, ela pode acontecer porque, por exemplo, temos um familiar em coma e ele acordar, para mim isso é que é a magia. Porque acreditamos muito nisso e, depois, isso simplesmente acontece.